Vivência sobre perdas conecta futuros médicos às famílias enlutadas pela Covid-19, gera comoção e pedido singular
Texto: Joana Silva
O que era para ser apenas mais uma atividade dos alunos do 4º ano de medicina da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande (MS), aflorou sentimentos que fizeram marejar os olhos dos futuros médicos. A tarefa de escrever cartas aos familiares enlutados pela Covid-19, para confortá-los, levou os jovens não só a se identificaram com suas histórias, mas a tocarem corações e ouvidos há quase três mil quilômetros de distância da UFMS. Do Norte do país, um familiar fez um pedido inusitado, o desejo de receber uma carta-consolo escrita pelos estudantes.
“Fiz o pedido dizendo que gostaria de receber cartas”, conta Alessandra Brito Bentes, 44 anos, sobrinha e irmã afetiva de João Barreto Bentes, mais conhecido como Preto, vitimado pela Covid-19 no dia 25 de abril. Ela lembra que o pedido foi feito depois de acompanhar, por meio de uma rede social, a leitura de algumas cartas no sarau dos voluntários promovido pelo projeto Inumeráveis, memorial dedicado à história de cada uma das vítimas da Covid-19.
Naquele sarau do dia 7 de setembro, a paraense Alessandra conheceu a proposta da professora Rosimeire Aparecida Manoel Seixas, que compartilhou a história da solicitação para a elaboração de cartas aos familiares, como atividade do módulo de bioética e o fim da vida, no qual temas como a morte e o luto são abordados. “E, para minha surpresa, a Rosi enviou mensagem pela rede social, solicitando a confirmação do nome de meu irmão e pedindo para aguardar, que eu receberia a minha carta”, diz a sobrinha, moradora de Santo Antônio do Tauá, 56km da capital (Belém).
A professora explicou que a atividade tinha por proposta trabalhar o processo de comunicação. “Muitas vezes não sabemos o que dizer diante da morte e como futuros médicos, eles deveriam fazer esse exercício, além de fazer o exercício de tentar se colocar no lugar do outro, considerando que em algum momento na trajetória profissional deles, irão se deparar com a morte”, complementa.
Pela avaliação da professora, 36 anos, com graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Saúde Coletiva, os estudantes cumpriram a tarefa. “Ao longo da leitura dessa atividade eu fiquei muito emocionada com a sensibilidade expressa naquelas cartas, o processo de identificação desde o momento da escolha do tributo e com a forma acolhedora que eles conseguiram expressar nas palavras para aquelas famílias. As palavras chegam onde a nossa voz e presença não poderiam alcançar. Os alunos realmente se conectaram com aquelas histórias de vida”, avalia a psicóloga.
Das palavras às lágrimas
A tarefa solicitada pela professora consistia na escolha de uma história-tributo sobre uma vítima da Covid-19, enviada por um familiar e publicada no memorial. Ao todo, 32 alunos participaram da atividade, mas apenas cinco cartas não foram encaminhadas a pedido dos alunos. Assim, 27 cartas foram encaminhadas às famílias, de 14 estados brasileiros, das cinco regiões do país, com vítimas na faixa etária entre 15 e 95 anos.
Alessandra diz que, além da emoção o que mais chamou sua atenção foi como a remetente de uma das cartas, recebida três dias após o seu pedido, sabia de tantas coisas do estado do Pará, terra do tio. Não por acaso, a primeira carta encaminhada à Alessandra por correio eletrônico, no dia 9 de setembro, vinha de uma outra paraense, da estudante Giovanna Mallmann, de 20 anos, nascida em Santarém.
“Pra mim, a experiência de escrever as cartas foi além do objetivo inicial da disciplina. Mais do que trabalhar a linguagem em situações de luto e morte, ao me ver diante de uma homenagem feita com tanto zelo, palavras escritas com tanto amor e saudade, tive que lidar com os meus próprios sentimentos primeiro. E entrei em conflito. Senti vontade de chorar, de abraçar bem forte, de fornecer alento de alguma maneira. Me senti profundamente humana – e pequena”, relata a futura médica, que ingressou no curso de medicina aos 16 anos.
Giovanna, Gigi ou tantos outros apelidos herdados, conta que o exercício proporcionado pela professora Rosimeire lhe permitiu observar quanta nobreza há em dar e receber afeto, seja por meio de um abraço ou de uma simples carta, considerada por muitas famílias como um presente num momento em que o ritual da despedida não aconteceu.
“O desafio de escrever uma carta resposta despertou uma empatia visceral, dolorida e me conectou com os familiares de pessoas até pouco tempo, desconhecidos. Tive trocas lindas, dei e recebi carinho de “desconhecidos”, pessoas que agora, ajudaram a moldar meu caminho. O que eles nem desconfiam é que o presente foi meu, por ter tido a oportunidade de consolar. Acredito que “pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto”. E recebi muito mais do que eu poderia imaginar. Seja como futura médica ou só como Giovanna, carregarei comigo a coragem de Dona Vinoca e a risada de Preto. Eles me ensinaram muito. Eles jamais serão um número. Jamais serão esquecidos”, confidencia.
No dia 16 de setembro, Alessandra recebeu mais uma carta, desta vez da estudante Alexia Melo. “Posso afirmar que ao receber as cartas, ficamos felizes e aliviados com tamanha sensibilidade. Nos sentimos acolhidos e, principalmente, abraçados. Termino com o agradecimento que postei nas redes sociais. Obrigada, Rosi!! Seus alunos estão de parabéns!! Agradecemos todo o carinho recebido através das cartas da Giovanna e Alexia. Diante da pandemia, podemos refletir que o futuro é incerto. Não sabemos se viveremos muito. Por isso, vamos viver o HOJE! O Preto e nenhuma vítima do Covid-19 serão números”, conclui Alessandra.
O estudante João Nakamura pode experimentar sentimentos e reações similares aos de sua colega de turma Giovanna. “Quando li a história da Eliane de Oliveira Lourenço, instantaneamente me senti tocado. Senti na minha própria pele o calor do seu abraço, a luz do seu sorriso, a alegria contagiante, mesmo sem nunca tê-la conhecido. Senti também a dor e o vazio de ter perdido alguém tão próxima de mim que sangrei. Sangrei na alma e no corpo. Chorei ao escrever a carta aos familiares. Fiquei de luto. Senti saudades”, desabafa o futuro médico.
Nakamura afirma que seria um eufemismo dizer que a atividade mexeu com ele. “Ela me mudou. Me fez mais humano e me mostrou a realidade dolorosa que estamos enfrentando e o quanto estamos apáticos. Isso precisa mudar. Salvem suas Elianes. Esse trabalho me fez entender que precisamos pensar e sentir o outro. Não quero que a história de Eliane se perca em meio a outros números brutos e vazios. Queria que todos pudessem entender a gravidade do momento histórico que estamos vivendo e se emocionassem. Que se protegessem”, pede o futuro médico.
Projeto Inumeráveis
O projeto surgiu da inquietação de dois idealizadores, o Edson Pavoni e o Rogério Oliveira em ver a sociedade tratando a pandemia como um número. Responsável pelo encaminhamento das cartas às famílias, Rayane Urani Querubina, 31 anos, disse que viu com muita alegria a atividade proposta aos alunos do 4º ano de medicina.
“Tudo aqui é sobre as conexões que a gente cria e foi motivo de orgulho saber que a nossa mensagem entrou em salas de aula e não só isso, mas também foi capaz de contribuir pra formação de futuros médicos. O Inumeráveis tem nos permitido viver e ver a pandemia por diferentes perspectivas, e esse foi um lado especial. Fez a diferença pra gente, pros alunos, pras famílias e pra Rosi, que foi tão sensível e incrível ao propor esse exercício”, afirma Rayane, voluntária do projeto.